segunda-feira, 14 de abril de 2014

Elementos básicos acerca da discussão sobre o trote

Elementos básicos acerca da discussão sobre o trote[1]

Escrevemos este texto anteriormente a tormarmos conhecimentos das atrocidades dos trotes ocorridos na Unesp em 2014, como no trote homofóbico na Unesp Jaboticabal, e nos trotes machista de Botucatu, que se somam ao nefasto histórico de violências dos trotes. Não relataremos aqui os detalhes das práticas de tortura naturalizadas como tradição, mas buscamos uma breve compreensão acerca destas práticas, engajados na construção de uma luta que parta do questionamento dos trotes ao questionamento do caráter de classe do projeto de educação que temos.
Introdução: trote, estrutura de poder, e a comemoração do vestibular

O trote é a passada do cavalo que está entre seu ritmo ordinário e o galope. A habituação do cavalo ao ritmo deste passo se dá por meio de uma força externa, ao controle do cavaleiro. O passo é aprendido, se preciso, a esporadas e golpes físicos. O trote estudantil guarda alguma proximidade ao do cavalo. É uma modalidade de “integração” que se efetua por uma habituação do estudante a uma passada específica, um ritmo, uma ordem. O estudante que se entende como veterano, respaldado pelos interesses da instituição, assume para si o papel do cavaleiro, que irá exercer controle, se preciso a esporadas, na adequação do ingressante à ordem do novo espaço.
Esse espaço é uma universidade com uma estrutura política totalmente anti-democrática. Seus regimentos herdados da ditadura militar criminalizam a organização do movimento estudantil e de todos aqueles que lutam por um outro projeto de universidade, que esteja à serviço dos trabalhadores e conjunto da população. Os reitores são escolhidos a dedo pelo governador, de forma alheia a qualquer decisão democrática. Seus principais órgãos deliberativos funcionam através do 70/15/15 (70% de peso decisório para os professores, e apenas 15% a cada um dos outros dois segmentos, a dizer, funcionários e estudantes).
A população que paga a universidade através de seus impostos não tem voz nenhuma neste espaço, bem como tem seu acesso barrado pelo vestibular. O financiamento das pesquisas é voltado ao benefício da classe dominante. Seus recursos são advindos dos impostos cobrados sobre a classe trabalhadora, mas não é permitido o acesso do conjunto desta classe, através do filtro social que é o vestibular. A verba pública é direcionada segundo interesses privados.
A estrutura anti-democrática da universidade pública não se dá no vazio. Esta universidade é uma instituição de ensino de um Estado que tem um conteúdo de classe, que serve como palco de execução dos negócios particulares da classe burguesa. A estrutura de poder da universidade está, portanto, a serviço da manutenção da ordem burguesa. A falta de democracia da gestão universitária está a serviço de manter um projeto de universidade comandado de acordo com os interesses da classe capitalista.
O vestibular é um processo de seleção que tem por objetivo deixar uma parcela da população fora da universidade pública. Poucos estudantes conseguem passar por este funil. O trote cada vez mais é veiculado em materiais publicitários como um momento de festejo acerca do “mérito” do ingressante. É uma espécie de recompensa pelo esforço de estudo. Esta óptica de visão sobre o vestibular faz com que, ainda que muitos ingressantes repudiem os trotes, outros desejam recebê-lo. Desta forma, os festejos dos trotes possuem um conteúdo formado por anos de educação sob uma lógica neo-liberal na qual o ensino superior público não é direito de todos, mas é condicionado ao “mérito” de alguns. Por isso se festeja, por isso é uma alegria ter a pele marcada, por ser merecedor das raras vagas, por ser um dos poucos deste sistema de exclusão.
A relação com o projeto neo-liberal de educação não fica por aí. O Trote Universitário, pode ser entendido como uma prática educativa que tem como uma de suas principais funções naturalizar a estrutura de poder anti-democratica e autoritária da universidade aos “novos” que chegam, e logo ajustá-los à ela. O trote ensina, fundamentalmente conteúdos subjetivos como se submeter a uma ordem, não ter voz, obedecer, conteúdos de conduta caros à uma universidade antidemocrática. O trote cumpre o papel de o quanto antes adestrar os “bixos” ao passo correto da universidade.
Ao mesmo tempo que o autoritarismo e submissão presentes no ambiente do trote encontram respaldo na meritocracia e no autoritarismo da atual estrutura de poder da universidade para se legitimar, dialeticamente, esse mesmo ambiente do trote cumpre o papel de educar os ingressantes à naturalidade dessa mesma meritocracia e estrutura de poder. Aqui é importante ressaltar que o combate ao trote universitário deve ser entendido não apenas como o combate à violência entranhada nas diversas atividades que ocorrem especificamente nos dias de matricula e nas primeiras semanas de aulas (elefantinho, pedágio, raspagem de cabelo etc.), mas principalmente como um combate à lógica que está de fundo à essas atividades, que é a própria lógica do atual projeto de universidade e de sua estrutura de poder.
Desse modo a internalização da ordem universitária vai se dando em diferentes momentos: No primeiro contato com a universidade, a partir do Trote Formal, quando a lógica da estrutura de poder arcaica da universidade revela-se de maneira totalmente despida e caricatural através das atividades que ocorrem nas primeiras semanas de aula envolvendo “bixos” e “veteranos”; Num momento posterior, como uma espécie de “trote cotidiano”, através das próprias relações cotidianas mais corriqueiras entre os estudantes, muitas vezes pautadas pela mesma lógica de submissão expressada nas atividades do trote. É muito comum em republicas, por exemplo, meses após ter ingressado na universidade, o primeiro-anista ser obrigado pelos “veteranos” à ter que servi-los, limpar a casa, cozinhar ou pagar cervejas aos demais justamente pela sua condição de “bixo”. Aqui poderíamos dar diversos exemplos de como a lógica caricatural expressa nas atividades das primeiras semanas relacionadas ao trote, permanece cotidianamente na relação entre muitos estudantes.
É importante percebermos que o autoritarismo legitimado e naturalizado nas relações pautadas pelo trote universitário, que legitimam o “veterano” a tranquilamente poder ordenar, punir, humilhar, invadir o corpo do outro, possui uma ligação direta com o autoritarismo do regime disciplinar da universidade remanescente da ditadura militar que naturalmente também pune aqueles que atentam contra a “boa ordem”, “a boa moral e os bons costumes”. É neste sentido que a submissão experenciada por diversos estudantes ingressantes, não apenas no momento e nas atividades do trote formal (dias de matricula e primeira semana de aula), mas também numa lógica de relação cotidiana com os estudantes mais velhos na qual está implícita a sua submissão, que se estende ao longo dos anos, são eficientes praticas educativas que naturalizarão a atual estrutura de poder da universidade diante de quem ingressa na universidade.

A Divisão entre Trote “Leve”, “Médio” e “Violento”

A consideração das práticas do trote como violentas é questionada através do argumento da “integração” ser uma necessidade no início do ano letivo. Todavia podem haver distintas formas de integrar-se, sem que esteja pressuposta uma relação de hierarquia e opressão. Há uma parte dos trotes que é vista mais facilmente como repugnante, no caso, aqueles que chegam a levar estudantes ao óbito, ou deixam sequelas físicas irreparáveis. Por exemplo: Em 2003, Ugo Boattini Jr., 19 anos, abandonou o curso de engenharia na Unesp-Guratinguetá, depois de ter um peso de 7 kg amarrados aos genitais durante o trote; Também em 2003 Encapuzados e carregando tochas, lembrando as vestimentas da Ku Klux Klan, alunos veteranos do curso de Medicina Veterinária da Usp, obrigaram os ingressantes a tomarem banho com um liquido retirado do estomago de gado, a comer grama e a rolar na lama e no estrume de roupas intimas; F.A.C, 17 anos, de foi obrigado a rolar na lama e a comer ovo podre, tendo um ovo introduzido em seu ânus, durante o trote da Universidade Federal do Mato-Grosso do Sul em 1998; Ou mesmo quando o trote acaba em assassinatos, como no caso de Edson, ingressante em medicina da USP em 1999.
Geralmente estes casos são noticiados pela mídia, gerando perplexidade nos leitores. Todavia, o remédio que a própria mídia burguesa costuma fornecer a estes casos, largamente aceito como medida de resolução, são os exemplos de “trotes solidários”. Esta é inclusive uma prática adotada por diversas instituições de ensino como política que visa teoricamente coibir os “trotes violentos”, nestes escritos oficiais substitui-se o termo “bixo” por outro um pouco mais polido, o termo “calouro”.
Gesta-se desta forma uma separação entre gradações de tipos de trotes na qual uma parte deles é considerada inadmissível, colocados no campo de “violência”, devendo ser repudiados e punidos; ao passo que outras formas são naturalizadas no campo da “brincadeira” e “integração” saudáveis. Esta gradação é um tanto quanto questionável, e de difícil mensuração. O tom de voz; a intimidação; as ordens recebidas à todo instante, a submissão do primeiro-anista explícita no ar; as “brincadeiras” constrangedoras e opressoras; a tensão, a ridicularização dos apelidos; a pressão para se cortar o cabelo; a taxa em dinheiro para não levar ovadas; enfim a condição de “bixos” e “bixetes” que precisam ser adestrados à ordem que rege a universidade. Assim, algumas práticas de trote extremamente violentas por vezes são classificadas como “brincadeiras”. Em um ambiente no qual os poros estão abertos à opressão, um apelido racista com o qual um ingressante é batizado pode ser considerado uma “brincadeira”, todavia, este momento pode deixar uma marca violentamente profunda neste estudante. Quem são os juízes que decidem quais os limites entre o trote leve e o violento? Entre a integração saudável e a violação? Ainda que pareça um “simples” corte de cabelo ou pintura de rosto em trotes considerados “leves”, temos de estar sensíveis às formas de violência intrínsecas à própria lógica do trote, sem jamais normatizar a intimidação, a submissão, os constrangimentos, o machismo, a homofobia, o racismo presentes nestes ambientes “leves”.
Para a universidade, que se beneficia do trote universitário, o combate à este passa por mantê-lo sob formas um pouco mais “leves”, negando o problema existente em sua gênese enquanto tradição, sendo na verdade uma defesa velada da violência nas relações, pois como dissemos, a variação entre leve e violento é uma farsa. A ideia de que deva existir um ritual especial ao início do ano, ainda que sem violências mais claramente expressas, é na verdade associada a óptica burguesa sobre a vitória meritocrática que é passar no vestibular, e a necessidade de festejo e divulgação deste acontecimento que é ter sido um dos poucos a ingressar num processo seletivo excludente. Caso contrário, a integração não necessitaria de nenhum ritual especial. A manutenção desta tradição, ainda que se tente ligeiramente modificar parte das práticas a ela associada, já é violenta em sua gênese. Quando se mantém formato de relação veterano-bixo, mesmo com um “veterano gente fina”, a desigualdade está pressuposta na relação, e o campo para violações estará aberto, dependente apenas dos critérios do próprio “veterano”.
É comum que muitos estudantes relativizem a violência dos trotes. As opressões são impressionantes e se repetem todo ano nas universidades em um nível de violência e abrangência inegável, os exemplos divulgados pela mídia são numerosos, fora os não divulgados, são conhecidos pela proximidade a práticas de tortura. Acerca destes casos mais reconhecidamente violentos é mais fácil que se tenham acordos acerca dos “abusos”. Mas é fato também que nem em todos os casos as violências sejam tão claramente expressas como estas práticas de tortura, e é sobre este aspecto que buscamos aqui evidenciar.
Muitas vezes, inseridos em diversas contradições, alguns ingressantes até desejam receber trotes, por ser um momento que é um marco na vida deles. O combate contra o trote neste sentido ganha contornos complexos, pois temos que ser compreensivos e não mecânicos neste combate. Muitas vezes o caráter violento do trote fica borrado e escamoteado, principalmente quando é um trote considerado “leve”. Alguns estudantes mais antigos, ainda que tentem se aparentar mais democráticos, muitas vezes acabam reiterando com pequenas atitudes elementos de trote e de autoritarismo absolutamente desnecessários à integração, estas pequenas atitudes fazem parte do trote, e seguem a mesma lógica de relação dos trotes que levam a torturas.
Todavia, ainda que algumas situações sejam mais complexas e repletas de ambiguidades, não há relativismo que negue o caráter hegemonicamente violento dos trotes. A polidez do termo “calouro” em substituição a “bixo” procura esconder que a universidade é conivente com as práticas dos trotes, escondendo que estas práticas ocorrem normalmente. O uso da lei pela burocracia só se torna mais rígido quando trata-se de “trotes violentos” ao ponto de ferir a imagem da própria universidade, caso contrário, os conteúdos aprendidos nos trotes estão em plena consonância ao funcionamento ordinário desta instituição anti-democrática. A mesma lógica autoritária de relação está presente nos trotes “leves” ou “violentos”, sendo que, constantemente, um tipo pode levar ao outro. Fazendo uma breve pesquisa acerca do histórico dos “trotes violentos” vemos que muitos deles se iniciam com práticas consideradas leves. Muitos dos casos mais reconhecidamente violentos são castigos aplicados a estudantes que apresentaram resistência a práticas consideradas leves, por exemplo.

A “Integração” e as Opressões

Integrar-se é estabelecer uma relação. A integração fornecida pelo trote está em consonância à manutenção da atual ordem universitária. O fato de ser uma forma de integração não significa que seja necessária, ou que seja o único tipo de integração possível. O estabelecimento de relação entre estudantes pode se dar numa condição de igualdade de posições entre os interlocutores. Ou, como ocorre nos trotes, numa condição de desigualdade de posições, se manifestando nas “calouradas” através das designações “veterano” e “bixo”. A integração estabelecida entre “veteranos” e “bixos” durante o trote se dá por meio de ordem e controle autoritários. A submissão está presente nas “brincadeiras”, que por vezes são humilhações morais, por vezes são também castigos físicos. Nesta forma de integração, submeter-se às “brincadeiras” de bom grado é condição necessária à integração “sadia”, sem punições físicas, morais, chacotas, insultos ou isolamentos.
A estrutura de funcionamento da integração promovida pelo trote, na qual está pressuposta uma posição desigual entre os interlocutores, abre à diversas formas de opressão. Se em alguns outros tipos de relação os estudantes encontram menos respaldo social e até resistência diante de ações opressivas, numa relação em que a hierarquia é legitimada, tornando-se inclusive praticamente condição necessária à aclimatação do estudante no espaço universitário, a perpetuação de opressões ganha terreno fértil. O ambiente do trote é perfeitamente adequado ao machismo, um ambiente perfeito à toda violência de gênero, racismo, homofobia, transfobia, lesbofobia e misoginia. Com uma rápida pesquisa podemos perceber que não faltam exemplos, ano após ano, de opressões relacionadas aos trotes.
São muitas vezes nas formas de trote colocadas no âmbito do “leve”, da “brincadeira”, da simples “integração”, e logo da normalidade, que encontramos um caminho aberto para as opressões. A própria naturalização da submissão da condição de “bixo” em relação à de “veterano”, abre brecha para uma serie de assédios dos veteranos em relação às primeiro-anistas, não sendo raro os casos de estupros de ingressantes. O corpo da mulher muitas vezes é apropriado por atividades do trote que possuem conotação sexual, de maneira à expor as primeiro-anistas à situações de violência e constrangimento: ser obrigada a chupar banana e outros objetos na frente de todos, dançar de maneira sensual, desfilar de roupas intimas etc.

                              Ingressante obrigada a chupar objeto, trote Agronomia UnB 2011.

 Da mesma forma as diversas expressões de racismo e homofobia também encontram espaço aberto dentro do ambiente do trote, se expressando através de apelidos que visam ridicularizar os primeiro-anistas, humilhações, agressões físicas e verbais e etc. Recentemente tivemos o caso do trote da UFMG que expressou um exemplo claro do racismo presente nas universidades.



















O termo “bixo”

O termo “bixo” claramente remete à desumanização do estudante ingressante, à sua incapacidade de decisão própria, necessitando de um guia que ensine seus passos, como um cavaleiro e seu cavalo, utilizando a mesma analogia. O “bixo” não é ainda humano o suficiente para participar do espaço em condição de igualdade, é aspirante a tal, mediante as provas que irá ter que passar, até que passe por toda uma batelada de rituais tão tradicionais quanto for a criatividade dos inventores da tradição no momento. O uso do termo “bixo” é em si ofensivo. Há, por outro lado uma substituição diplomática pelo termo “calouro”. Assim como a universidade reitera a lógica de submissão ao estabelecer algum tipo de punição apenas em casos extremos aos aplicadores de trote, mas, por outro lado elogiar os trotes “saudáveis”, quando usa o termo “calouro” em substituição a “bixo” acaba utilizando o mesmo sentido só que uma palavra diferente, que escamoteia o tipo de relação pressuposta.
Em Marilia, já há alguns anos, substituímos o termo “Calourada” por “Ingressada”. O significado de “calouro” é também problemático, no sentido de se referir, assim como o termo “bixo”, a alguém que almeja ser algo que ainda não é. Assim como na música, um calouro ainda não é cantor, mas apenas aspirante a tal, um aspirante que deve passar pelo julgamento dos mais experientes, o calouro na universidade é uma espécie de aspirante a estudante, que ainda passará por algumas provas. É uma relação distintiva do ingressante para os demais estudantes. O problema não é o termo em si, pois seu significado poderia ser alterado, mas reside exatamente na tradição de seu uso. As “calouradas” tornaram-se tradicionalmente as ocasiões onde os trotes ocorrem, e este tipo de relação se estabelece entre os estudantes. Devemos ir contra a reivindicação desta tradição. O termo “calouro” é apenas uma maneira mais formal e “leve” de dizer “bixo”. A mudança por qualquer outro termo que mantenha o mesmo conteúdo não resolve o problema, pois de fundo, o problema é a que tipo de relação estes termos se referem materialmente e não as palavras em si, contudo, exatamente por isso, por hoje estes termos estarem totalmente conectados às práticas às quais se referem, eles mesmos tornam-se ofensivos e organicamente atrelados a tradição autoritária material do trote, e o uso deles referido a esta tradição autoritária, devendo portanto, ser cuidadosamente pensado.

 “Tradição Acadêmica”, vestibular e o trote como festejo de uma universidade elitista

Ainda que muitos reconheçam alguns problemas relacionados ao trote, há uma representação deste que o torna indiscutível em alguns meios. O trote é representado como sendo uma tradição. Este fato torna possível que em alguns casos os próprios estudantes sofram abusos, submetam-se a ordens, concebendo esta postura como uma espécie de manutenção de uma tradição de sociabilidade. Uma tradição é mantida sem nenhuma explicação racional necessária. Quando representado como tradição, o trote é tirado do terreno de discussão. Tenta-se dar ao trote o caráter de ser uma prática a qual todas as pessoas presentes nas universidades e todas as que já passaram por ela participaram, aparentando ainda, ser algo que “sempre” ocorreu, logo tornando os questionamentos e outras possibilidades, muito pequenos diante da imensidão desse “sempre imemorável”.
Toda a tradição possui agentes de sua reprodução, a tradição não possui poder superior aos agentes, isto é uma ilusão. Basta que seus guardiões deixem de reproduzir uma determinada tradição para que ela deixe de existir. As tradições ganham um status secular, todavia, são inventadas a cada vez que alguém as reproduz. São historicamente mutáveis. Os próprios trotes ganham novidades ano a ano. O Clero durante o Feudalismo manteve a perpetuação das tradições que os interessava através da inquisição, das torturas. É uma decisão política abandoná-las ou mantê-las. Assim como os membros do clero do período citado, hoje temos universitários decididos a serem guardiões desta “tradição” de integração, dispostos a interferirem no corpo do estudante do primeiro ano, a humilharem, a maltratarem, inclusive aplicando punições e castigos.
A representação do trote como tradição e sua reprodução tem base não apenas na decisão dos “veteranos” de cada ano (nem sempre estes estudantes estão completamente consciente politicamente acerca de suas práticas), é um processo de longa duração, que não à toa está atrelado a interesses da classe dominante. A raridade de vagas na universidade pública se dá por um projeto de educação que busca favorecer os interesses dos grandes empresários, mantendo a maior parte do ensino superior brasileiro relegado à iniciativa privada, transformando educação em um negócio muito lucrativo[2], à revelia da qualidade do ensino e da oferta de vagas em instituições públicas, que se daria através da estatização das privadas[3].
O filtro do vestibular nas universidades públicas faz movimentar os lucros também do imenso número de cursinhos pré-vestibulares privados. No interior destes cursinhos já se inicia o processo de educação necessário a passar no vestibular, o qual o trote irá dar o retoque final. O trote nas propagandas destes cursinhos é veiculado como símbolo de uma conquista, como vitória num processo de concorrência no qual a maioria ficou de fora, perdeu (“Faça Anglo, Vire Bixo”, por exemplo). Aqui o direito ao ensino superior fica condicionado ao mérito individual, sendo fruto de uma conquista, desta forma fica escondido o fato do Estado não oferecer ensino superior público a todos. Sob esta perspectiva veiculada, os estudantes que conseguem passar no processo seletivo, adentram na universidade por seus próprios méritos, por outro lado, os que não adentram, ficam de fora por seus deméritos. O peso da insuficiência da política de educação recai não sobre o Estado, mas sobre os ombros dos indivíduos que sofreram por esta insuficiência. Sob esta óptica invertida, não é o Estado culpado por não oferecer possibilidade de acesso e vagas suficientes num ensino superior público e de qualidade, mas os próprios indivíduos que ficam de fora deste projeto de educação excludente que passam a ser culpabilizados por não terem conseguido passar na prova, ou são “incapazes”, ou não são suficientemente esforçados nos estudos.
Ensinando os estudantes secundaristas a olharem o vestibular com este ponto de vista, nos cursinhos aprende-se de maneira não consciente aspectos importantes da ideologia dominante, de competição entre os estudantes que encontram-se numa mesma condição. A ideologia dominante de um tempo é a ideologia da classe dominante. A óptica invertida de visão sobre o que é o vestibular, a imagem que a burguesia cria sobre este filtro, de acordo com seus próprios interesses, se manifesta no significado que se dá ao sucesso ou insucesso neste processo seletivo.
Neste sentido, alguns estudantes chegam ao primeiro ano aguardando um ritual festivo, que marque sua pele para que possa tirar uma foto e divulgar sua vitória, festejando seus próprios méritos, e reproduzindo a óptica burguesa sobre este processo seletivo. A relação do ingressante, portanto, com a tradição do trote, pode ser ortodoxa e heterodoxa. Alguns estudantes primeiro-anistas educados nesta lógica submetem-se a certos constrangimentos, chegando a reivindicar a aplicação do trote. Em seu texto “O trote no curso de pedagogia e a prazerosa integração sadomasoquista”, Antonio Zuin da Universidade Federal de São Carlos, relata a entrevista de uma mãe que considerou ser pouca coisa, e até mesmo sem graça, apenas rasparem o cabelo e pintarem o rosto do seu filho, afirmando que se ela fosse a veterana “teria feito muito mais” e que seu filho não poderia “voltar para casa sem portar sinais que o identificassem como alguém que havia passado na Usp”.
A falta de democracia no próprio acesso à universidade já está introjetada num ponto em que ingressar nela é aceitar moldar-se sob sua lógica. Esta postura de legitimação em relação ao trote não é moral, mas é a forma como o estudante materialmente aprendeu a lidar com este momento de transição que é momento do ingresso na universidade. Posteriormente elx pode romper ou não, alguns já rompem com esta lógica desde o início, resistindo aos “veteranos”, e rebelando-se. Por outro lado vemos também primeiro-anistas que são bastantes sensíveis aos constrangimentos e violências característicos do trote, de modo a se posicionarem de maneira contraria à “tradição”, se negando a participar ou a cumprir ordens dos “veteranos”, apesar de todo ambiente adverso do trote.
Um fato interessante de ser notado é que muitos estudantes que dizem ter gostado do trote, reivindicando-o e até dizendo que pretendem continuar com a “tradição” quando forem veteranos, se tivermos oportunidade de dialogar, em geral sempre relatam alguns momentos nos quais se sentiram constrangidos ou que gostaram menos. Essa ambiguidade entre integração e tensão, sorrisos e ordens autoritárias, “brincadeiras” e constrangimento é característica do trote.

O Combate ao Trote e Experiência de Marília 

Assim combater o trote, ligando-o à discussão da estrutura de poder da universidade, significa criar um espaço na ingressada para que haja formas de integração entre os estudantes no qual se combata a lógica de submissão do estudante ingressante em relação aos demais estudantes, no qual nos coloquemos de maneira extremamente sensível ao combate à qualquer expressão da lógica do trote em nossas relações, politizando a discussão no sentido do questionamento ao projeto de universidade. Criando esse espaço, no qual o primeiro-anista saiba que não será chamado de “bixo”, que não receberá “ordens” e nem será tratado com desdém e humilhação, conseguiremos nos aproximar tanto de uma serie de estudantes que chegam à universidade com muitos incômodos em relação ao trote e sua lógica, bem como também conseguiremos dialogar com os incômodos mesmo daqueles que se colocam a favor do trote. Neste sentido a Luta pelo fim do vestibular deve passar necessariamente pela luta contra os trotes, pois estes são diretamente relacionados à raridade das vagas, são a continuidade do processo seletivo, segregando e selecionando estudantes, são a manifestação em ritual do festejo da vitória e da meritocracia. Assim como o vestibular não é um sistema de ingresso, e sim um sistema de exclusão, uma vez que a experiência da maioria que o presta não é de ingressar na universidade através dele, mas de ser barrado, o trote também não é um ritual de integração neutra, mas de humilhação sistemática, de opressão, de exclusão de determinadas rodas, de afunilamento, de habituação forçada, de perpetuação das opressões, continuando um processo seletivo já iniciado desde os cursinhos, desde toda a vida, iniciando as práticas educativas da ordem dominante e da estrutura de poder da universidade. O questionamento do trote é o questionamento da estrutura de poder da qual o trote é parte constitutiva ao ensinar a sujeição à falta de democracia desde os momentos iniciais que se adentra nela.

Por fim a reflexão e experiência de combate ao trote que temos em Marília, que passa desde a organização de discussões sobre o trote ligando-o à questão da estrutura de poder e opressões, até a forma como estabelecemos relacionamento com os ingressantes, tem sido uma ponte importante de aproximação com os estudantes do primeiro ano, pois somos um grupo consequente que tem acúmulo e tradição nesta discussão. Organizamos panfletos sobre o tema e campanhas visuais com frases do tipo: “Nem Bixo, Nem Bixete, Nem Veterano: Por uma integração horizontal entre os estudantes”, “O Autoritarismo do Trote bebe no Autoritarismo da Estrutura de Poder da Universidade”; “Por uma integração horizontal entre os estudantes: sem ordens, sem constrangimento, sem submissão”; etc. As mesas organizadas por nós sobre o tema alcançam uma audiência importante para abordarmos o questionamento da lógica dos trotes e para abrirmos sensivelmente uma série de debates políticos com os estudantes dos primeiros anos que são mais tocados por esta questão.  Travamos uma discussão que parte do questionamento aos trotes universitários ao questionamento do projeto de educação e da lógica do capital.



[1] Este texto contém alguns elementos mais básicos das conclusões acerca das discussões sobre o trote realizadas em Marília nos últimos anos. Aqui apenas resumimos alguns dos principais pontos que norteiam a luta que travamos pelo trote. Temos intenção de elaborar um texto destrinchando mais os argumentos, com dados que temos reunidos, e elementos do histórico dos trotes que levam a nossas conclusões com mais propriedade.
[2] O ímpeto do capitalista que investe na área de educação não é o valor de uso, mas o valor de troca. A qualidade do ensino não interessa tanto quanto sua lucratividade.
[3] Para que não confundam com políticas de expansão baseadas na precarização como o REUNI, falo de uma expansão das vagas no ensino público, mas tendo em vista qualidade deste ensino, que funcione numa auto-organização, num governo tripartite entre os três segmentos, com fim do reitorado, numa educação a serviço da classe trabalhadora, que volte suas pesquisas ao benefício da população. A “qualidade” do ensino não tem um caráter neutro neste sentido, mas assume a forma de qualidade para a classe trabalhadora. De maneira imediata defendemos o fim do vestibular com a estatização das universidades privadas.

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