sábado, 1 de fevereiro de 2014

Sobre a polêmica do "beijo gay"

Por Felipe Chagas, militante da Juventude às Ruas - USP



Mudanças de paradigmas. Hoje, nós LGBT*, em tese, deveríamos estar festejando. Deveríamos estar festejando porque, em tese, toda a nossa comunidade foi “oficialmente” reconhecida pelas famílias ‘quatrocentonas’ cariocas depois do “primeiro beijo gay da TVGlobo”. Hoje, sábado, 01 de fevereiro de 2014, sem dúvida nenhuma, muitos comentaristas de plantão estarão enviando seus amores às corporações Globo pela grande iniciativa.

No entanto, eu como gay, viado, fagg, bicha, e todos os epítetos já utilizados para tentar me ofender (não só nas ruas, mas também por esse mesmo meio de comunicação, a TV), não estou nada contente. Aliás, acredito que dada às comemorações alheias, este talvez seja o melhor momento para uma boa reflexão e nada mais feliz que fazê-lo inaugurando um novo blog que se dedicará exclusivamente às LGBT* em luta.

A realidade é que nós existimos e isso incomoda muita gente. Incomoda muita gente a ideia de pessoas poderem viver em harmonia longe do núcleo fundamental da burguesia: uma família heterossexual nucleada por um macho alpha com prole também heterossexual que gerará mais famílias heterossexuais nucleadas. Eu me lembro, da minha infância (que não se vai muito longe, diga-se), de muitas pessoas se surpreenderem com alguns papéis femininos, também em novelas globais, sendo trabalhadoras, mães solteiras e tudo o mais que faz parte da realidade da população brasileira há muitos anos.

Há muitos anos, há muuuuitos anos, há milhares de anos, os homo sapiens sapiens (a.k.a. nós) desenvolveram a habilidade de fazer sexo para recreação (!) (assim como os golfinhos!) e óbvio, não eram só órgãos sexuais femininos penetrados. Eu poderia me debruçar sobre meu notebook reavivando muitos conceitos históricos a respeito dos inúmeros tipos de relações entre seres humanos que se diferem do “papai e mamãe” e que hoje conhecemos como a comunidade de LGBT*, mas isso desviaria o foco desse texto.

O que de fato importa é que, aproximadamente, nos últimos dois milênios foram criados padrões de tantos tipos para justificarem tantas opressões (homofobia, machismo, xenofobia, racismo, são todas opressões pelas quais o atual sistema social vigente se mantem) que as LGBT* se esconderam cada vez mais dentro de si. Nas últimas décadas esse grupo de pessoas não organizado sentiu (é importante que se diga que no movimento LGBT, assim como no movimento de mulheres ou no movimento negro, existem muitas frações e diferenças), talvez como o espírito do tempo, que estava na hora de mudar essa realidade do submundo e tomar para si o papel de cidadão como o de todas as outras pessoas.

Nesse momento nós avançamos. Com a novela da Globo ontem, não.

A realidade, gente, é que nós estamos aqui, e o que vimos ontem nas telinhas (sic) foi apenas uma realidade retratada de forma mais que atrasada a partir do ponto de vista da burguesia (com seu núcleo familiar patriarcal, heterossexual e com prole) sobre a nossa existência. É tão vergonhoso as LGBTs se arrastarem por várias novelas para conseguirem um único beijo gay no principal canal de televisão no “horário nobre”, que me sinto revoltado. Sinto-me revoltado porque é humilhante saber que depois de tantos anos, com uma audiência exorbitante causado pelo principal personagem dessa obra ficcional (que é um ex-vilão gay que virou mocinho), que o tão esperado beijo foi um selinho que durou 4 segundos (ou menos que isso), na penúltima cena da novela depois das 23h duma sexta-feira. Patético, apenas.

Na noite de ontem nós não fomos reconhecidos, gente. Na noite de ontem nós arrancamos da burguesia brasileira (e sim, galerinha, não adianta vir com Reinaldo Azevedismo que não cola) uma coisa que ela estava guardando às sete chaves: o nosso direito de ser o que quisermos. Ao mesmo tempo em que muitos devem estar mandando flores ao diretor de núcleo da Globo, muitos devem estar, assim como eu, escrevendo textos e mais textos atacando o “perigo que ronda a família brasileira”, como diria infelicianos por aí.

Por fim, é preciso que nós, LGBT*, aprendamos com nossa própria história: nada nos é dado, tudo por nós é conquistado e com muita luta. Dessa vez não foi diferente, afinal hoje o Brasil reconhece a legalidade da união civil entre qualquer pessoa e, apesar de ofuscado pelos movimentos de junho, a luta da união civil igualitária foi uma das que mais mexeu com os alicerces sociais e colocou gente nas ruas em 2013 (antes de junho) e nos trouxe a um novo paradigma. Muitas lutas ainda existem e precisamos vencê-las o mais depressa possível pois, assim como o beijo de Félix e Nico, são para ontem!

E já que citei junho, faço um apelo e um alerta aos companheiros de várias organizações políticas, inclusive aos meus: junho veio e se foi, gente. Nós devemos saber aproveitar os acertos desse fenômeno, mas também precisamos aprender, e muito, com os erros que cometemos. Junho, assim como julho, agosto, setembro e todos os subsequentes, se foram. Sua herança, de fato, é atemporal, mas hoje devemos travar outras lutas para alcançarmos nossas vitórias. Às vezes a realidade nos é dura e não queremos aceitar que algo tão magnifico possa ter se esvaído de nossas mãos tão rapidamente, mas a realidade é uma tirana e se impõe. Que nos próximos meses em luta que virão, as LGBT* retomem seu protagonismo e, com o resto dos trabalhadores, possamos voltar às ruas e lutar por um mundo sem opressões. 

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