quinta-feira, 22 de agosto de 2013

O selinho que questionou o "reduto do macho"

por Alberto Suzano

Se você mora no Brasil, é homem e não gosta de futebol, certamente você já foi chamado de “viado”; se você for uma mulher brasileira que gosta de futebol, fatalmente já foi chamada de “sapatão”.

O futebol, esporte mais popular no mundo, com mais de 270 milhões de praticantes, foi oficialmente criado na Inglaterra, no século XIX, mas se expandiu de tal maneira por aqui que o Brasil passou a ser conhecido como o país do futebol. Entre os milhões de praticantes há uma pequena elite, formada pelos profissionais do futebol masculino, que jogam em grandes times de massa no Brasil, ganhando quantias absurdas. Várias das torcidas dessas equipes têm um número absoluto de fãs maior que a população de vários países do mundo.

Devido a essa gigantesca abrangência que o esporte bretão tem por terras brasileiras desde o início de sua expansão (a partir das primeiras décadas do século XX), a cultura futebolística foi absorvida pelos preceitos morais conservadores vigentes na sociedade da época (muitos deles presentes até hoje) como mais uma ferramenta de separação heteronormativa. Por ser um esporte de contato físico intenso, foi então considerado como “coisa para homens”, ainda mais numa época em que mulheres esportistas eram raridade.

Mas não foi só a prática que se tornou, logo de cara, exclusividade masculina. O acompanhamento do noticiário acerca do futebol profissional e o gosto por táticas e escalações se configuraram, por meio de métodos de educação formal e informal, em clivagens que demarcavam o comportamento masculino do feminino.

O resultado disso é a imposição de que um menino precisa gostar de futebol. O pai, o professor, os colegas de escola, entre outros, o pressionam para que ele aceite e faça parte do principal “reduto do macho” na sociedade. Se não aceita, é discriminado e tem sua masculinidade colocada à prova. Se é mulher, é ridicularizada, afinal, “mulher não entende nada de futebol” - ou  também taxada como “sapatão”.

Essa educação heteronormativa, que aproxima homens pelo futebol, isolando-os dos “não homens” e das mulheres, cria certos espaços totalmente machistas e homofóbicos de convívio masculino - locais em que os homens se sentem livres não só para falarem de tudo o que cerca o futebol, como também para reforçarem estereótipos e preconceitos sobre mulheres e homossexuais.

Exemplos não faltam. A grande maioria dos programas televisivos que discutem futebol é composta por diversos homens “especialistas” no assunto, que comentam, com achismo e concertezismo, especulações a respeito do mundo da bola, enquanto uma mulher (totalmente enquadrada no padrão de beleza da sociedade: loira, alta, magra e de olhos azuis) cumpre o papel técnico de apresentar as notícias a serem comentadas, sempre sofrendo constrangimentos com comentários machistas. Sem contar as frequentes e depreciativas brincadeiras envolvendo a sexualidade de jogadores ou dos próprios comentaristas, feitas de forma homofóbica.

Uma simples pelada ou o acompanhamento de uma partida de futebol no estádio são situações repletas de xingamentos e piadas homofóbicas e machistas. Se um jogador sofre uma falta e demora a se levantar, é “viado”, “mulherzinha”. Se há uma árbitra ou auxiliar mulher, ela recebe uma enxurrada de “cantadas” ofensivas no início do jogo. Depois que a bola rola, cada suposto erro de interpretação seria motivado pela incapacidade feminina de compreender o esporte, assim, a mulher tem que “voltar pra cozinha” ou “pilotar fogão”. A mesma ofensividade ocorre quando uma espectadora se atreve a comentar o jogo perto de um “especialista” masculino, seja em casa ou no próprio estádio.

A cultura futebolística está longe de ser a única forma de o homem expressar machismo e homofobia na sociedade atual, mas é uma das mais bem acabadas. Ela possui espaços de convivência internos bem definidos e membros que se reconhecem como pertencentes ao "principal reduto do macho”.

Selinho homoafetivo

Na segunda-feira, 19 de agosto, o jogador Emerson Sheik, titular do Corinthians, publicou uma foto de si próprio beijando um grande amigo na boca, dando o popular selinho. A decisão sobre a postagem da foto foi feita conscientemente contra a homofobia e o machismo no esporte, já que o autor publicou o seguinte texto abaixo da imagem: "Tem que ser muito valente, para celebrar a amizade sem medo do que os preconceituosos vão dizer. Tem que ser muito livre para comemorar uma vitória assim, de cara limpa, com um amigo que te apóia sempre".

Mesmo sendo o jogador que fez os dois gols na final da Copa Libertadores 2012, dando o tão sonhado título a sua equipe, Emerson foi alvo de protestos de um setor de uma torcida organizada do Corinthians, cujos membros se locomoveram até o centro de treinamento do clube para demonstrarem descontentamento. Faixas exigiam a saída do jogador da equipe, com dizeres claramente homofóbicos: “Vai beijar a PQP, aqui é lugar de homem” e “Viado não”. Isso sem contar os milhares de torcedores corintianos que também se revoltaram com a atitude do jogador e expressaram isso na internet, do mesmo modo que fãs rivais tiraram sarro da atitude de Sheik.

E por que um selinho provocou tanto rebuliço? Exatamente porque o ato de Emerson questiona um pilar importante da educação heteronormativa, internalizado por toda a sociedade, ao mesmo tempo em que ameaça o tal reduto machista e homofóbico, exclusivo dos homens. Se um jogador de futebol dá um beijo homossexual significa que, ao contrário do que as instituições sociais ensinam, gostar do esporte, acompanhá-lo ou praticá-lo não define a sexualidade de uma pessoa. E isso assusta, pois pode significar que qualquer um dos "machos inquestionáveis" se assuma como homossexual se a questão passar a ser aceita socialmente. 

Hoje é um e tomara que amanhã sejam 50, 500, 5 mil, 5 milhões. Os homossexuais são uma enorme parcela da população, muitos e muitas amam futebol, mas têm que escolher: ou escondem a sexualidade para torcerem publicamente ou não torcem publicamente. Vários, por exemplo, vão a estádios e não se atrevem a ficar de mãos dadas com parceiros porque sabem que sua segurança estaria em risco. 

Sem contar os jogadores que têm medo de se assumirem, pois o fato pode até mesmo colocar em xeque suas carreiras, como ocorreu em caso internacional recente do jogador estado-unidense Robbie Rogers, que se assumiu homossexual e decidiu largar o futebol por afirmar ser "impossível continuar". No entanto, pouco tempo depois, uma equipe o contratou e houve até uma manifestação favorável ao jogador por parte dos torcedores do St. Pauli, clube alemão cuja torcida é conhecida por ser anti-homofóbica e anti-racista, além de ter um presidente assumidamente homossexual. No Brasil, houve o lamentável caso envolvendo um dirigente palmeirense e um juiz homofóbico sobre uma possível transferência do jogador Richarlyson.

Em outras palavras, os homossexuais precisam sair do armário também no futebol, o que não é tarefa fácil, pois é preciso questionar toda uma estrutura social machista e homofóbica.

O selinho de Sheik foi um passo importante, assim como a criação, na internet, das torcidas Queer (que surgiu com fãs do Atlético-MG), em que adeptos de diversos times de massa do Brasil defendem a liberdade de torcer expressando sua sexualidade, contra a homofobia, o machismo e o racismo. São pequenas iniciativas que já começam a ganhar repercussão para questionar esse tabu dentro de toda a cultura do futebol no Brasil, que já foi ainda mais racista, principalmente no início do século XX (veja mais aqui). Na Alemanha, a própria federação nacional lançou campanha que incentiva atletas homossexuais a se assumirem.

Uma "inocente" piada homofóbica, tão comum no mundo do futebol, ajuda a reforçar diversos esterótipos e preconceitos em uma sociedade machista e homofóbica, corroborando com a chacina de homossexuais que ocorre diariamente no Brasil (um dos países mais homofóbicos do mundo) e que é reforçada por setores conservadores, como pelo presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, Marco Feliciano (PSC). A demanda parece tão elementar que soa absurda: que os homossexuais e mulheres possam expressar livremente o gosto pelo futebol e praticá-lo. E como o futebol e a cultura que o envolve são um reflexo social, só é possível levar essa luta até o fim questionando as raízes da homofobia e do machismo em toda a sociedade. Ou seja, uma mera discussão sobre futebol, nesse caso, é um discussão sobre a sobrevivência de muitos homossexuais.

2 comentários:

Ótima reflexão Suzano. Concludente e inspiradora.

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