sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Rio: para saber-se negro

Relato de Leticia Parks sobre o verdadeiro Rio de Janeiro - o Rio de Janeiro negro!

Estive há poucos dias no Rio de Janeiro. Desde criança vejo nas novelas, nas propagandas e nos cartões postais o retrato dessa cidade tida como a melhor fotografia do que é o Brasil.

Em tudo o que o país carrega de sua ideologia mais arraigada, o Rio é o maior manifesto. Para os que dizem que fazer teatro é ser global, vê-se na cidade os intermináveis cartazes de atores globais estrelando peças que conseguem ser mais degeneradas que eles próprios. Para os que dizem que só pode tirar a roupa na praia os que tem corpos esculturais, as mulheres e homens, jovens e mais velhos, passam todo o dia de sol correndo pelas praias de Copacabana e Ipanema mostrando que para estarem de barriga de fora tem todo o tempo e dinheiro necessários. Depois, sentam com seus amigos igualmente tatuados, sarados e bronzeados e falam das asneiras típicas da (pequena) burguesia. Aplaudem o por-do-sol a beira mar depois de terem emporcalhado a praia com suas latinhas e cocôs de cachorro. Para os que idolatram a ocupação militar das favelas, é possível subir o morro do Alemão de bondinho e ver, em meio aos escombros tingidos de sangue, uma grande favela pacificada, tirar fotos e mostrar para os amigos que não foram para lá nessa temporada. Para os que lembram saudosos e desejosos da ditadura, é possível admirar o forte armamento de cada policial que anda pelas ruas, ou que exibe suas metralhadoras pela janela da viatura. Para os que dizem que temos orgulho de nosso passado colonial, basta ir à Pça XV e admirar as fantásticas obras imperiais e pós-imperiais que lembram o passado de portos escravistas, de higienizações racistas.

Para os que tem a pachorra de dizer que negros e brancos convivem em harmonia nesse grande país miscigenado, não há muito o que dizer.

Como negra, vivo a minha vida sem saber parte de minha história. Graças a Ruy Barbosa, que em 14 de dezembro de 1890 ordena a queima dos arquivos da escravidão, jamais saberei, assim como a grande maioria dos negros brasileiros, qual é a origem de minha família, quais eram seus nomes, como chegaram aqui, quantos deles morreram no caminho pela insalubridade e violência dos navios negreiros. Talvez esse elemento possa parecer pequeno para os que não se atentaram ou não vivem com ele. A história é fundamental para forjar o sujeito. Sem história é muito difícil que se consiga forjar cultura, identidade e, principalmente, sujeitos que se radicalizem contra a história de seu povo. Há tempos me revoltei contra a exploração sobre os trabalhadores em todo o mundo, dentre os quais um parcela importante é negra. Mas ainda me faltam, assim como a quase todos os negros brasileiros, a história concreta de nossos antepassados, que tornaria nossa revolta contra a opressão e, dessa maneira, contra a exploração, ainda mais agudas.

Para isso, fui conhecer o Rio que de fato representa o Brasil, que não é o Rio dos globais, dos sarados, da “passivização” policial, da “beleza” imperial. Fui conhecer o Rio da violência imperial sobre os escravos, do assassinato indiscriminado de jovens negros, do apagamento da história viva de todas as negras e negros desse país.

Comecei pelo que há de mais recente.

Na Rua da Candelária, a poucos metros da entrada da igreja de mesmo nome, é possível

ver o monumento desgastado pela chuva e pelo vento que familiares fizeram para homenagear as crianças que na madrugada do dia 23 de julho de 1993 foram brutalmente assassinadas pela polícia, que parou com os carros no local onde elas dormiam e abriram fogo sobre todas, levando 8 jovens negros à morte. Solucei quando notei que esse monumento, diferente do museu do Banco do Brasil, não só não recebe qualquer visita, como também não recebe qualquer financiamento ou preservação por parte do Estado. Os nomes dos meninos passam lentamente a ser esquecidos, até o que o tempo dê conta de sumir com cada uma das letras que, relutantes, formam os nomes daqueles que, infelizmente, já tiveram suas mortes esquecidas.
Monumento aos mortos na Chacina da Candelária

Da Candelária segui para a Rua Pedro Ernesto, no bairro da Gamboa. No número 36, de maneira totalmente encoberta por anos de esquecimento, está o cemitério dos pretos novos. Porque novos? Porque esses 30 mil escravos enterrados nesse terreno jamais chegaram a viver a vida da escravidão, tendo, após sequestrados em sua terra, chegado mortos ao porto. O fato de o Rio ter recebido metade dos escravos sequestrados para a América torna concreto dizer que este é o maior cemitério escravo do continente, e que ali estão precariamente enterrados muitos dos irmãos, primos e companheiros dos ancestrais de cada negro brasileiro. Se a Candelária representa nosso presente, a Pedro Ernesto representa as origens dele, e é por esse motivo que esse é mais um dos locais históricos de nosso país que a burguesia, pela via dos governos e prefeituras, mantém o descaso e a podridão reservados a esse importante ingrediente de nossa revolta.

A Gamboa tornou-se, algumas centenas de anos depois, palco de um prestigioso momento de contra ataque dos negros. Rodrigues Alves, presidente do Brasil em 1904, implementou apoiado com os projetos higienistas de Oswaldo Cruz, uma brutal expulsão de negros do Rio de Janeiro, para tornar a capital do país menos negra, logo, mais apresentável aos olhos do Imperialismo. Tendo suas casas demolidas e suas famílias expulsas, os negros recém “libertos”, vivendo sob condição de miséria, tiveram como estopim para sua revolta a aprovação no Congresso de obrigatoriedade na vacinação contra a varíola. Dos dias 10 a 18 de novembro de 1904, moradores negros do bairro da Gamboa organizaram, na mesma rua onde os pretos novos estavam enterrados, uma das mais fortes barricadas da Revolta da Vacina. A repressão do governo deixou 30 mortos e mais de 100 feridos. Para a barricada não encontrei nenhum monumento. Talvez porque o melhor seja fazer uma nova.

Saindo dali estive na Pedra do Sal, um ponto de encontro dos sambistas e daqueles que apreciam a música. O lugar é lotado, muito pelo samba e pouco pela história. Ao lado de um grande mercado de escravos, estava a pedra que pouco a pouco, no início do século XVII passou a ser rodeada por trabalhadores escravos e livres das docas, que talharam uma escada na pedra para tornar mais fácil o acesso à carga e às casas, que subiam o morro para além da pedra. Lá é também onde se registra as primeiras rodas de samba cariocas, que aconteciam após o longo dia de trabalho escravo descarregando navios. Junto a roda, outras manifestações da cultura negra vinham a tona, como os terreiros de candomblé, trazidos pelos escravos baianos. A região é até hoje cercada de quilombos, que expressam o histórico e interminável impedimento à moradia para os negros, que se inicia, obviamente, com o fato de que para que ela ocorresse de maneira livre, os negros fugiam e se enfrentavam violentamente contra a escravidão.

Esse foi o Rio que conheci em pouco mais do que um dia. Este Rio que me encheu o rosto de lágrimas, os pés de raiz, a mente de idéias e cada parte do meu corpo de uma pulsação mais fervorosa e raivosa, corpo e mente com mais certezas de que o sistema capitalista, que sobrevive do racismo, precisa mais do que nunca acabar.

Obrigado aos que me fizeram encontrar tudo isso.

Letícia Parks é militante da Ler-qi e da Juventude Às Ruas e estudante de Letras na USP

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