quarta-feira, 21 de março de 2012

Um "contra-poder" inquilino do estado burguês, ou estratégia para vencer os capitalistas? Um debate de estratégias com o autonomismo

por João de Regina







Após três anos da crise não só as contradições econômicas se aprofundaram, como as políticas vêm adquirindo caráter cada vez mais determinante. O final de 2011 mostrou como governos e empresários dos principais países capitalistas não conseguem encontrar soluções duráveis para os problemas decorrentes da crise e como esses problemas evidenciam-se cada vez mais como encruzilhadas que só poderão ser resolvidas no terreno da política e da luta de classes. 
Politicamente 2011 se iniciou com a primavera árabe que colocou em cheque ditaduras como a da Tunísia e do Egito, e fizeram do mundo árabe um barril de pólvora onde as massas e a ação direta tiveram tanto protagonismo que a palavra revolução voltou a ser uma palavra chave em todo o mundo. Não por acaso a ocupação da praça Tahrir passou a ser uma referência da juventude que se levantava em todo o mundo. Em maio, as mobilizações na Espanha, que adquiriu o nome de “movimento dos indignados”, renomeava a praça do sol, agora ocupada, de Tahrir.
A juventude sem emprego e sem estudo da Espanha, atacada por um índice de desemprego de mais de 20%, não saiu às ruas sozinha. Foi acompanhada por jovens gregos que ocuparam a praça Syntagma e se aliaram com várias ações de trabalhadores que lutavam para que a crise não fosse paga por eles. Na Grécia não só a juventude estava nas ruas como os trabalhadores efetivaram inúmeras greves gerais e fortíssimas mobilizações nos serviços públicos, lutando contra os planos de austeridade. Em Outubro, essas mobilizações arriscaram iniciativas globais com o movimento 15-O. Em mais de 85 países ocorreram mobilizações ainda que as mais massivas tenha sido de fato nos países já afetados pela crise. Neste processo a ocupação de Wall Street teve importante destaque ainda que o pacifismo apresentado por ela contrastasse com os enfrentamentos de rua que aconteceram em Atenas e Milão.
Ainda que na América Latina possamos dizer que os efeitos da crise aparecem indiretamente, entendemos que as mobilizações estudantis no Chile e a luta dos povos originários na Bolívia são antecipações de conflitos ainda maiores.
Apostamos que essas mobilizações da juventude que combinam, ainda que de forma bem desigual, métodos radicais e aliança com os trabalhadores, são parte de um novo momento histórico onde as massas e métodos radicais de ação direta voltam a possuir protagonismos e o capitalismo, a burguesia e suas formas de representação política mostram-se cada vez mais ineficientes em dar soluções aos problemas derivados de seu próprio modo de produção. Assim, franqueia-se um período de enfrentamentos mais abertos entre as mobilizações de massa e o estado capitalista.



Autonomismo como parte de um espírito de época.

Entendemos que a nova etapa que se abre desmascarou características ideológicas de um período anterior. Este era marcado por idéias que partiam de grandes teorias sociais e iam até o senso comum, passando pelos debates dentro da própria esquerda. Do ponto de vista subjetivo, em todo o mundo e de forma massiva esta época, caracterizada pelo neo-liberalismo e o fim das experiências dos estados operários, significou um fortalecimento do individualismo, da vida privada, da fragmentação, objetiva e subjetiva, dos trabalhadores e do imediatismo sem precedentes (enfim, a recomposição das posições morais da burguesia nas distintas classes). Estes valores contribuíram para apagar do horizonte dos jovens e trabalhadores a idéia de revolução e de socialismo.
Do ponto de vista teórico, duas das ideias mais disseminadas eram a de que o “fim da história” havia chegado e de que a classe operária não existia mais. Essas ideologias, ainda que com diversos matizes, se apoiavam no fim dos estados socialistas, para afirmarem que havíamos chegado a um ponto onde as grandes rupturas históricas haviam ficado para trás e a democracia e o capitalismo se desenvolveriam de forma equilibrada rumo a superação de suas contradições.
  Na obra de Fukuyama, grande paladino da tese do fim da história e financiado pelo próprio imperialismo, o conteúdo ideológico dessas teses fica mais evidente, porém esse espírito de época teve expressões críticas que preponderam também na esquerda e nos movimentos de contestação. Apesar de possuírem um verniz anticapitalista as teses abaixo são para nós ideologias deste período que caracterizamos como restauração burguesa, ou seja, de restauração das posições da burguesia através da derrota física e moral do movimento operário organizado da época.
1. a forma estado nação havia sido superada pelo próprio capitalismo;
2. o capital se globalizou a ponto de deixar para trás conflitos inter-imperialistas clássicos do século XX.
3.Tanto a riqueza quanto a pobreza estariam sendo distribuídas por todo o globo, o que não mais permitiria falarmos sobre países imperialistas e países semi-coloniais.
4. Não seria mais classe operária o sujeito da transformação social, mas sim a ideia de uma “multidão”.
Essas teses eram defendidas por militantes e ativistas que apresentaram uma “nova” concepção de transformação social: de que não seria necessário um momento de transição para o comunismo; nem a construção de uma forma de poder transitória que pudesse por fim à resistência desesperada dos exploradores privados de seu poder, para a possibilidade do surgimento de um novo modo de produção; da negação da necessidade de um momento insurrecional e militar para a derrubada da burguesia e da construção de um novo poder revolucionário. A estratégia que estaria no lugar seria a da construção de experiências de “contra poder” ligadas a movimentos sem identificação de classe que explorariam as brechas dentro do capitalismo. Algumas vezes estas teses chegaram ao ponto de negar a possibilidade de colocar fim ao capitalismo e se contentaram em se transformar em estratégias de vivência dentro dele próprio.
Ao conjunto dessas teses e dessa negativa da necessidade de uma estratégia para derrubar o capitalismo chamamos de autonomismo. Evidentemente, este não se formou enquanto um movimento único e homogêneo, mas sim com distintas apropriações destas. Mesmo assim compreendemos que o autonomismo pode ser considerado como a recusa do enfrentamento com o estado e a proposição de alternativas para se viver à margem dele. Este ponto é importante, pois muitas vezes o autonomismo se emaranha nas concepções anarquistas. Ainda que estes dois compartilhem a recusa de um momento de transição para atingir o comunismo entendemos que o autonomismo volta às concepções do socialismo utópico uma vez que, diferentemente do anarquismo, se recusa à destruição do estado capitalista de forma insurrecional e propõem experiências paralelas. Não há frase melhor para resumir esse conjunto de ideias do que o titulo do livro de John Holloway, inspirador do movimento zapatista, “Mudar o mundo sem tomar o poder”.
Se pela direita o espírito da época dizia que o capitalismo, por si mesmo, havia chegado ao fim da história e enterrado a possibilidade de um mundo socialista, pela esquerda propunha que fechássemos os olhos para o poder do capital, nos esquivássemos da “tentação do poder do estado”, e nos contentássemos com experiências de contra-poder. Ora, com um verniz de novidade, acusando o socialismo de uma concepção presa ao século XIX, as ideias dos anos noventa esqueceram de dizer que também compartilhavam de fundamentos de tal século: os pró-capitalistas não falaram que suas promessas eram as mesmas do período do capitalismo de livre concorrência; e os “anti capitalistas” esconderam que compartilhavam do sonho dos primórdios da história do socialismo, a utopia de ter experiências livres do estado e do capital sem destruir o capitalismo.



A crise econômica e as teses autonomistas



Entendemos que o avançar da crise econômica vem demonstrando cada vez mais os erros das teses autonomistas. A crise da União Europeia evidenciou como o estado nacional ainda é fundamento da economia capitalista e que ela própria não era um exemplo de “divisão de riqueza e pobreza entre os países” mas uma tentativa de dominação das potências imperialistas que serviu como forma de descarregar sobre as nações de menos poder econômico os efeitos da crise capitalista. É impossível compreender as crises políticas como as que ocorrem na Grécia e na Itália por fora dos conflitos entre as nações e os interesses de recolonização de algumas nações da Europa. No mesmo sentido não temos no horizonte uma diminuição dos conflitos inter-imperialistas, mas muito provavelmente o contrário.
A dificuldade dos Estados Unidos em lidar com a primavera árabe, e a crescente insatisfação com a política sionista mostrou como de fato existe uma crise de hegemonia do imperialismo norte-americano, mas que de forma alguma isto significa diluição do imperialismo. Pelo contrário, o silêncio dos Estados Unidos frente à repressão da Junta militar no Egito evidencia os interesses imperialistas sobre a região (como a manutenção do acordo de paz de Camp David com Israel).
Porém, com certeza, o maior desmentido autonomista é a tese do fim da classe operária. As fortes mobilizações na França, as greves gerais na Grécia, a fundamental importância da greve geral para a queda de Mubarak são exemplos do posicionamento estratégico que possui a classe operária para a revolução e do fato de que ela é o sujeito revolucionário decisivo para as vitórias das mobilizações.



O autonomismo e as mobilizações atuais.



De fato uma analogia muito presente atualmente é a identificação dos movimentos de juventude de hoje com o movimento “no global” e com as jornadas de Seattle do final dos anos noventa. Essa analogia mostra que ainda existe uma forte influência das ideias autonomistas entre a juventude que se levanta frente à crise econômica. Não por acaso, pensadores de muita expressão no movimento no global como Antonio Negri e Naomi Klein rapidamente tentaram influenciar o movimento dos indignados.
As mobilizações anticapitalistas apresentaram importantes pontos progressivos, mas as concepções autonomistas foram os limites deste movimento. A ideia da falência do estado nação e de que o capitalismo precisava só de um “empurrãozinho” das multidôes para transformar seus avanços de força produtiva em coletivização - tese defendida por Negri - impossibilitou que a radicalização do movimento adquirisse forma de confronto direto contra o estado e debilitou experiências de organização que pudessem levar o movimento a desenvolver estratégias que pudessem colocar em xeque os governos e negócios capitalistas.
Essas ideias ainda possuem força entre os ativistas, os indignados. Porém podemos dizer que há duas concepções que podem influir sobre o horizonte deste movimento. Uma, a autonomista, insiste que os métodos e os fins são as mesmas coisas e se recusam a ir a fundo nas questões programáticas e organizativas que possam desenvolver o movimento. Nessa concepção os acampamentos, democracia direta e os atos são experiências mas não “métodos de guerra”. Nessa perspectiva ganham força posturas anti sindicais, pacifistas e alternativistas. Onde o objetivo não é o enfrentamento com o estado, governo e instituições repressoras mas a própria mobilização. É impossível não identificar essas concepções com antiga máxima reformista “o objetivo não é nada, o movimento é tudo”.
Por outro lado é inegável que a nova conjuntura imposta pela crise econômica impõe a experiência que mostra a necessidade de ter programas claros de combate ao capitalismo, à burguesia e a seus defensores. As mobilizações na Grécia possuíram exemplos de aliança da juventude com os trabalhadores, de enfrentamento encarniçado contra a polícia e de reivindicações que iam contra os planos de austeridade se enfrentando diretamente com o governo. E o Egito que serviu de exemplo para os movimento dos indignados segue o segundo ato de seu processo revolucionário se enfrentando contra o Exército e a junta militar com o aprendizado de “que não basta o movimento de acampamento; a greve geral foi fundamental para derrubar Mubarak e será para continuar a revolução.”



O Brasil no horizonte da crise econômica e das mobilizações de massas.



Apesar da crise econômica ter atingido o Brasil de forma indireta e o discurso do Brasil potência ainda ressoar, houve experiências no país que, podemos dizer, estavam contaminadas com os novos ares. Houve um verdadeiro espírito marchista em São Paulo que possuía referência nas mobilizações da juventude internacional, Marchas “da maconha”, “da liberdade”, slut walk, e o próprio 15-O, apesar de com menos peso, possuíram algum tipo de visibilidade.
Combinado a isso tivemos greves de trabalhadores precarizados e terceirizados em Jirau, na construção dos estádios para copa do mundo e na USP que mostra potencial para que nos grandes enfrentamento futuros o Brasil compartilhe das experiências mais avançadas das mobilizações internacionais, a radicalização de trabalhadores super-explorados. Essas mobilizações possuem um conteúdo político bem profundo uma vez que questionam um dos principais pilares do projeto de país do lulismo. Desmascara o nevoeiro e falatório do Brasil potência, esconde a precarização, a repressão policial e a super-exploração contra os trabalhadores.
Porém, essas mobilizações foram fenômenos bem separados e as marchas do estado de São Paulo possuíram muito mais um conteúdo autonomista do que um espírito de radicalização e pró-operário.
Hoje o país vive um debate nacional aberto pelas mobilizações dos estudantes da USP contra a polícia. Este, ainda que enfrente uma fervorosa batalha contra a grande mídia que apresenta o movimento como de minorias e elitista, vem mostrando características políticas que podem servir de lições para o desenvolvimento das lutas de juventude no Brasil.
Primeiramente o conflito abre um debate sobre o caráter da polícia militar, uma instituição do estado capitalista. A pressa da mídia em difamar o movimento como de “elitista” tem a ver, principalmente, com a necessidade de se ofuscar a potencialidade de um fenômeno de juventude e estudantil ter demandas em comum com os trabalhadores e o povo pobre. As mentiras de que os estudantes “só querem fumar maconha dentro da USP” visa esconder da população que os estudantes que lutam contra a polícia no campus são os mesmos que denunciam seu caráter repressivo, racista e machista nas favelas e nos bairros pobres; que são os mesmos estudantes que se solidarizam com as lutas dos professores da rede pública; que são os mesmos que questionam o elitismo das universidades públicas ao excluírem, pelo vestibular, os jovens trabalhadores; que fazem parte deste movimento os mesmos que denunciam as mortes de trabalhadores terceirizados da USP que morreram, ou pela violência da polícia na favela São Remo, ou pela insegurança imposta pela precarização do trabalho.
Ainda que as mobiliações da USP não possuam o caráter tão massivo como das mobilizações do Chile ou da Europa, a amplitude do debate que ela tem gerado abre a possibilidade de sacarmos lições estratégicas para um futuro próximo: a de que a juventude não possui interesses distintos dos trabalhadores e de que não há vitória sem estes, de que a luta contra o estado e seus aparelho de repressão é parte fundamental da luta da juventude, que não se contenta com experiências alternativas (buscando brechas dentro da miséria capitalista, com instinto individualista) mas que se movimenta pela vitória, pela subversão radical da sociedade de classes.

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