segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Quem "precisa de polícia"? Um debate estratégico com o PSTU sobre a polícia e o Estado burguês


por André Augusto e Iuri Tonelo, estudante de Ciências Sociais da Unicamp e militantes da Juventude ÀS RUAS


Com o alcance nacional com que repercutiram os eventos da USP desde 27/10, acreditamos ser este debate sobre a polícia e seu papel estrutural para o aparelho de Estado da burguesia uma assunto central para identificarmos alguns pilares do projeto de país sobre o qual a burguesia brasileira se fundamenta. A juventude pobre e trabalhadora está cansada de assistir às repressões, torturas e assassinatos cometidos pelo aparato repressivo policial, principalmente nos morros e favelas do país. Desde a Juventude às Ruas, acreditamos ser imprescindível levantarmos nossa voz implacavelmente contra o senso comum - alimentado por correntes de esquerda como PSTU e PSOL - de que esta democracia dos ricos pode possuir uma corporação policial "mais adequada à justiça e aos interesses do povo pobre", eliminando o "alto comando corrupto" e as individualidades aberrantes. Essa democracia podre não pode oferecer nada à juventude trabalhadora a não ser o título de "geração perdida", guiando-a ao beco sem saída do desemprego durante a crise econômica mundial; e não "segurança" por parte da polícia. O papel da polícia é reprimir e matar, e desde a Juventude às Ruas queremos fazer ecoar as vozes de nossos irmãos de classe mortos e brutalizados por ela. Abrimos um debate de estratégias acerca dessa questão.

No começo desse mês - em meio aos conflitos ocorridos na USP - recebemos estarrecidos o texto do intelectual e militante do PSTU Henrique Carneiro (professor de História da USP), publicado na Folha de São Paulo (Tendências e Debates - 05/11/2011), intitulado “polícia para quem precisa” (sic!). De maneira lastimável, diz-se neste texto que “Se há um agressor, estuprador ou assaltante armado, a PM será acionada como em qualquer outro crime. Mas revistar estudantes, dar buscas em centros acadêmicos ou prender jovens que fumam maconha em gramados do campus é não só dar destinação errada para a PM como extrapolar suas supostas funções de proteger a comunidade” (grifo nosso)1
Numa tacada, a partir das letras de Henrique Carneiro, vemos como este partido vem tratando de ganhar espaço no quadro da democracia burguesa às custas de qualquer delimitação séria com o aparato repressivo do Estado burguês, que tem por função assegurar a propriedade privada e, num país semi-colonial como o nosso, recorrer as maiores atrocidades contra a população trabalhadora e, nos morros e favelas, assassinando e reprimindo cotidianamente a juventude, população negra e pobres. Daí que este intelectual expressa nesta questão uma concepção profundamente “restauracionista dos ' 90” - período de grande recomposição moral da burguesia – capitulando a ideia de que seria viável um suposto “controle democrático” sobre a polícia dos exploradores, uma “destinação correta” que coincidisse com os anseios populares; e que a função normativa da polícia, ajustados os “reparos”, seria “proteger a comunidade”. Duas percepções que se encaixam perfeitamente no tecido psicológico do tipo “progressista moderado” envenenado pela democracia dos ricos: o que não se vê aqui é a concepção marxista da polícia como instituição indispensável para a burguesia organizada no Estado, este, manifestação do caráter inconciliável das contradições de classe
É no mínimo curioso um giro tão à direita – orientar “corretamente” a violência do estado burguês! – numa conjuntura internacional que começa a demonstrar cada vez mais os primeiros sinais de uma classe dominante que já não pode governar como antes, e vai utilizando de modo cada vez mais nefasto seu aparato policial.
Durante a crise econômica mundial, vêem-se destacamentos e operativos policiais cada vez mais virulentos ao redor do globo. No Chile, a série de barricadas, piquetes nas principais universidades e colégios, luta de rua pela educação gratuita e pela eliminação de toda a herança da ditadura de Pinochet no regime, fez com que a reivindicação legítima pela educação gratuita transbordasse seus limites e se voltasse contra o Chile patronal. Tanto assim, que a polícia chilena, herdeira direta da ditadura militar, assassinou um jovem de 14 anos, Manuel Gutierrez, e continua a destilar a crueldade característica desse órgão podre e odioso do estado capitalista: no último 21/10, a polícia invadiu a Universidade Católica do Norte (tomada pelos estudantes em luta), com autorização do reitor, prendeu dezenas de estudantes, levando 7 companheiras para a delegacia local e obrigando-as a ficarem nuas, arrancando as roupas daquelas que se recusavam. A alegação da humilhação? “Reivindicar estas causas” (sic). Não bastasse caso tão revoltante, soube-se de outro exemplo atual dessa repressão insuportável no assassinato, na Universidade Autônoma do México, de um ativista estudantil, Carlos Cuevas Mejía, baleado pela polícia (conhecida no México pelo genocídio de mulheres).
No Brasil, a sistemática repressão estatal contra os que se levantam em contraposição a essa democracia burguesa degradada (minando direitos elementares como o de greve) é um dos pilares do projeto de país – preparado por todos os governos anteriores, e potencializado durante o ciclo lulista – dedicado à garantia dos negócios das grandes construtoras e do capital estrangeiro.
Com uma população quase oito vezes menor que a dos Estados Unidos, o estado de São Paulo registrou 6,3% mais mortes cometidas por policiais militares do que todo os EUA em cinco anos, levando em conta todas as forças policiais daquele país. Dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública, e analisados pela Ouvidoria da Polícia, revelam que 2.045 pessoas foram mortas no estado de São Paulo pela Polícia Militar em confronto - casos que foram registrados como resistência seguida de morte - entre 2005 e 2009 (comparado com as assassinas forças policias dos EUA, que mataram 1915 pessoas no mesmo período). O alvo principal é a juventude negra e pobre dos morros e favelas – que a burguesia amontoa na periferia de suas metrópoles como bolsão de mão-de-obra precarizada a sua disposição – privada tanto de estudar como de trabalhar.
Nesse espectro, tendo em vista a operação policialesca desproporcional ocorrida na USP na semana passada, com 400 efetivos da polícia militar - incluindo tropa de choque, cavalaria, helicópteros e grupos especiais de operação - para desocupar a reitoria utilizando a USP como vitrine da política repressiva nacional que se anuncia, é notório também o caráter preparatório para o ataque estratégico à universidade, por parte das reitorias: tanto o papel da polícia como aparato direto de disciplinamento do ativismo operário-estudantil, como os golpes que visam o debilitamento da organização dos trabalhadores, privando-os não apenas da possibilidade de ir para a ofensiva, mas também de defender-se. Nesse aspecto, a burocracia acadêmica, ligada ao governo do PSDB em SP, orienta-se em se tornar o principal executor do direito à repressão pelo estado burguês.
O aparato repressivo policial serve para impor o projeto de sociedade daquela classe organizada enquanto classe dominante no Estado. A violência da polícia burguesa – civil e militar, ambas tropas especiais de guerra da burguesia contra os trabalhadores – nos morros, nas favelas, como nos campi universitários, busca desarmar e atomizar a resistência que os trabalhadores e a juventude opõem à ordem exploratória a que são submetidos. Com isso, sua luta contra os salários de fome, contra o embrutecimento da precarização da vida e do trabalho, pela garantia ao direito à educação, contra as demissões e a própria repressão estatal, são considerados como atentados contra o direito exclusivo à repressão por parte do Estado. 
O revolucionário russo Leon Trotsky, num discurso de defesa da Revolução Russa de 1905, em que os acusadores czaristas tratavam de criminalizar a “violência dos conselhos operários” durante a onda de greves de outubro, analisava esse estado de coisas: “Em todo estado que funcione 'normalmente', seja qual for sua forma, o monopólio da violência e da repressão pertence ao poder governamental. É seu direito 'inalienável' e o estado o guarda zelosamente, cuidando sempre para que nenhum grupo de particulares o viole. Desta forma a organização estatal luta por sobreviver
Por isso é ridiculamente ilusório pensar (como o faz um dos principais dirigentes do PSTU, Eduardo Almeida) que o programa para essa questão seria reivindicar uma “polícia democrática”, conforme diz: “A nova polícia teria que se organizar de forma radicalmente diferente da atual. Deve desaparecer a diferença entre polícia civil e militar, que não serve de nada, e assegurar todas as liberdades sindicais e políticas a seus participantes. É preciso também que seus comandantes ou delegados sejam eleitos pela população da região onde atuam. Ao contrário dos que se escandalizem com a proposta, a eleição de delegados locais é realizada em muitos países, inclusive nos EUA. É uma forma democrática de comprometer esses comandantes com a população local”.
A tese que aponta para a "correta destinação" da polícia tem como coluna de sustentação a defesa da corporação policial e, assim, do seu "exemplo de excelência", a dos EUA. É a tamanho atestado de indigência “democrática” que chega a sustentação, com acrobacias lógicas, das tropas especiais de guerra da burguesia contra as massas. Pelo contrário, ambas as polícias, das mais assassinas do mundo, só nos demonstram a necessidade de colocar a discussão, no momento atual, de saber: a quem serve a repressão policial, e contra quem, no mundo inteiro, e no "país que avança"?
Em seu artigo mais recente sobre a polícia nos morros do RJ2, em relação a esta outra forma dada por Eduardo Almeida à reivindicação de uma "nova polícia" nos moldes norte-americanos, alteram a silhueta do programa defendido, para não mudá-lo em nada. Apesar de reconhecer textualmente que "a população se vê à mercê da violência dos bandidos e dos desmandos e abusos policiais," o problema nunca chega a ser os instrumentos que organizam a violência burguesa em seu Estado, mas sim "enquanto houver essa polícia que existe hoje, vai continuar existindo violência contra a população pobre e negra". Ou seja, mais uma vez, a questão alegadamente posta aos trabalhadores e explorados é exigir uma qualidade distinta de repressão por parte do Estado burguês, exigir uma outra polícia. "Por isso o PSTU defende a extinção da polícia e a criação de uma força de segurança popular, democrática, controlada pela população e que realmente defenda seus interesses e a sua segurança," escrevem. Trata-se, portanto, para os companheiros da tradição morenista, que tanto avançaram na revisão do trotskismo principista (como insuperável teoria-programa da revolução proletária) e na deriva estratégica em relação à tradição do bolchevismo (como expressão mais acabada do marxismo revolucionário), de reformar o aparelho da segurança pública dentro dos limites do Estado burguês - e não contra este - desligando as tropas do seu comando. 
Daí a capitulação às pressões do senso comum de forçar, por exemplo, no âmbito do conflito da USP, o movimento estudantil a debater que tipo de segurança se deseja no campus, sem questionar o modelo burguês de universidade e que nunca se poderá regular "democraticamente" a "segurança" de uma universidade dos interventores, do governo do estado, da burocracia acadêmica, das fundações privadas, que exclui a imensa maioria da população de seu interior.
Deriva-se daí, para nós, o debate da questão candente e de amplitude nacional que cerca a luta dos combatentes estudantes pela imediata retirada da polícia da USP e das universidades, mas também que parem imediatamente com as repressões pelas UPPs, nos morros e favelas, ou seja, que consigamos combater essa instituição de repressão dos trabalhadores e o povo pobre. Para isso nosso programa deve ser pela dissolução da polícia, instituição de opressão de classe, e nossa aposta não se volta a soluções de “segurança” por parte de instituições do Estado burguês, mas na organização dos trabalhadores, com seus comitês de auto-defesa, para configurar uma resposta independente advinda dos trabalhadores às diversas barbáries sociais capitalistas.
Os revolucionários aprendemos com a história, e nossa firmeza e intransigência ideológica em relação à guarda pretoriana da propriedade privada é conseqüência do que de melhor houve no movimento revolucionário das massas trabalhadoras. Reivindicamos os communards parisienses de 1871 que dissolveram as forças de repressão bonapartistas através da constituição da auto-organização do povo em armas. Reivindicamos a gloriosa tradição dos operários russos de 1905 que, com abnegada energia - em que pese a debilidade de atuar sem comandos nem estado maior revolucionários - lançaram-se com furiosa ira contra as afiadas pontas das baionetas policiais do czarismo (sem pensar em trazer esses "faraós" para seu lado, ilusão infantil e anti-marxista). Reivindicamos a moral dos conselhos de operários e de soldados durante a Revolução Alemã de 1918, que possuíam um programa de ação - como em Düsseldorf, Gelsenkirchen, Gotha, Neukölln, Berlim - que apontava o desarmamento da polícia, a construção de uma guarda vermelha, um importante desenvolvimento que significou a vontade dos revolucionários de criar um centro de poder alternativo a partir de sua própria força armada. 
Nunca houve, na história do movimento operário, milícias operárias que pudessem se constituir e consolidar por fora de um programa claro de dissolução das forças policiais das classes possuidoras. Durante a grandiosa Revolução Russa de 1917, a evolução gradual da desconfiança dos operários e camponeses em relação à burguesia, que corria paralelo com a crescente confiança em suas próprias forças revolucionárias, ganhava contornos mais nítidos justamente na questão do combate às forças policiais. Tanto assim, que a iniciativa da formação das milícias vermelhas - antes mesmo da criação do Exército Vermelho - foi dos operários das fábricas de Petrogrado, que a tomaram instintivamente desde a queda do czarismo. Victor Serge escreve que os operários começaram a se armar, desarmando o antigo regime3. As formações regulares destas milícias operárias constituíram-se nos subúrbios proletários (sendo o mais famoso o subúrbio de Viborg), milícias essas que serviam para a proteção das organizações e das manifestações operárias, sem qualquer tipo de ilusão na "segurança" oferecida pela polícia inimiga. Lênin, ao tratar da milícia proletária, conclamava os operários a que "não deixassem que a polícia fosse restabelecida!", preocupação que partilhava Trotsky ao sempre colocar a questão de que os operários que dirigem conscientemente sua revolução devem dirigir golpes implacáveis e decisivos contra as forças armadas burguesas.
Aqui, claramente, nos referimos a situações abertas de revolução e contra-revolução como condição fundamental para que a consigna de "milícias proletárias de auto-defesa" (como define o Programa de Transição), se transforme em força material, ganhando autoridade da mentalidade das massas. Mas com isso frisamos bem, sem margem a dúvidas, como os revolucionários rechaçavam depositar qualquer confiança nos assassinos "faraós" da propriedade privada, a polícia burguesa.
Nos parece infeliz a todo jovem e trabalhador que já foi reprimido e violentado pela violência policial tenha que se defrontar com a palavra de ordem de Henrique Carneiro “polícia para quem precisa”, tão comum aos setores mais a direita na discussão que fortalece a repressão policial. Como disse o professor da USP a 15/11 na Folha, Vladimir Safatle, essa é a "polícia na América Latina que tortura mais do que na época da ditadura militar". A mesma corporação que organiza e arma o tráfico e as milícias nos morros e favelas dos Rio de Janeiro, que se beneficia com a extorção de renda das famílias pobres da áreas sob seu controle, e que trata ao telefone com Rodas um operativo de guerra para desalojar a reitoria da USP, torturar os jovens e abrir os inquéritos contra os 73 presos políticos da burocracia acadêmica da USP. É nesse sentido que devemos lutar com todas as forças em defesa irrestrita dos 73 presos políticos da USP. Sua perseguição política é funcional à continuidade de uma polícia assassina e repressora nos morros e favelas.
Enquanto permanecer a discussão elitista na esquerda sobre a “nova polícia” e direcionamento a essa máquina de opressão de classe, continuaremos, na tomada de Lenin, baseando-se na prática dos tribunos do povo,
que sabe reagir contra toda manifestação de arbitrariedade e de opressão, onde quer que se produza, qualquer que seja a classe ou camada social atingida, que sabe generalizar todos os fatos para compor um quadro completo da violência policial e da exploração capitalista, que sabe aproveitar a menor ocasião para expor diante de todos suas convicções socialistas e suas reivindicações democráticas, para explicar a todos e a cada um o alcance histórico da luta emancipadora do proletariado”.


3Victor Serge, “O Ano I da Revolução Russa”. Boitempo Editorial, 2007, p. 87
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